domingo, 29 de outubro de 2017

Mudanças de narrativa, ressignificação e autoimagem

"Nada acontece no tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. As palavras originalmente eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu poder mágico. Por meio de palavras, uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, um modo de mútua influência entre os homens."

Nossa memória é seletiva. Dependendo de quem você é e das coisas que acontecem, você acaba lembrando muito mais dos aspectos positivos ou negativos. A forma como contamos as histórias para nós mesmos e para os outros muda completamente a maneira como vemos os fatos e como nos sentimos. Toda mudança de sentimento em relação a coisas e pessoas é acompanhada por uma mudança de narrativa.

"Eu gostava de fulano, mas depois descobri uma coisa que me fez mudar de ideia."
"Eu não gostava de ciclano, mas percebi que ele era diferente do que eu pensava."

Além disso, histórias que contamos sobre nós mesmos quase sempre tendem a proteger nossa autoimagem. Quase ninguém fala algo do tipo "fiz merda porque sou uma pessoa de merda" ou "agi de maneira errada porque realmente não valho nada." O indivíduo que fala esse tipo de coisa é avaliado como alguém que possui uma autoestima reduzida ou que possui problemas de caráter moral. Quase sempre colocamos a culpa sobre nossas decisões ou atitudes ruins em fatores e circunstâncias externas ou que não eram possíveis controlar. No existencialismo, isso é chamado de má fé.

"Agi errado porque estava com raiva."
"Fiz errado porque não me ensinaram."
"Agredi porque me provocaram."

Existe pesquisa que diz que a maioria das pessoas, se perguntada "você se considera uma pessoa mais inteligente que a média?", responde que sim (é chamado de efeito Dunning-Kruger e se aplica a outras áreas também). Essa proteção da autoimagem não é algo errado, é questão de saúde mental. Se uma boa parte das pessoas achasse que possui um valor reduzido, seria um grande problema para elas mesmas. Precisamos recontar nossa própria história quando nos sentimos ameaçados, quando isso nos deixa mal ou para manter uma coerência interna. Precisamos proteger nossa identidade.

Nossa identidade, o que somos e o que pensamos são algumas das coisas mais valiosas que temos. Por isso você vê tanta gente capaz de brigar, discutir e até matar por coisas com as quais se identificam ou contra coisas que ferem sua identidade. É o caso de certas manifestações políticas ou do machão que se descobre corno. E, por isso, algumas pessoas consideram ataques às suas ideias como ataques pessoais.

Prosseguindo, acredito que nossa memória emocional geralmente é mais forte do que a memória dos fatos propriamente dita. Em muitas ocasiões, não lembramos exatamente como aconteceram as coisas, mas podemos nos lembrar de como nos sentimos na hora. Por isso mudar nossa narrativa acaba sendo uma tarefa fácil na maioria dos casos. Não precisamos mudar o que aconteceu, apenas como nos sentimos em relação ao que aconteceu. E, para mudar como nos sentimos, acabamos mudando a narrativa. Acabamos mudando a forma como contamos a história.

Por exemplo, o significado de uma pessoa na sua vida começa a mudar no instante em que a mesma decide terminar um relacionamento amoroso com você. Com isso, muda sua visão sobre ela, mudam as histórias que você conta sobre ela e muda o sentimento que você tem por essas histórias e por essa pessoa. A imagem da pessoa é ressignificada. Você deixa de associar a pessoa ao seu conceito do que é amor. Deixa de associar a pessoa ao seu conceito do que é carinho. Acho isso triste, mas é necessário para que a vida possa seguir.

As narrativas possuem um poder muito forte sobre nossas vidas. A maioria das pessoas não percebe isso. A maioria das pessoas muda as narrativas sem ter consciência. Mudar a narrativa é ressignificar. Ganhar poder sobre suas próprias narrativas significa ter controle sobre sua própria vida. Isso levanta uma série de dúvidas e questionamentos sobre o que é a verdade. Mas deixo essa discussão para um outro momento.

"A memória é uma ilha de edição."


Contém spoilers:

Nenhum comentário: