sábado, 15 de agosto de 2020

Desconforto e narrativas

Acredito que, na vida, quem vive bem é quem sabe lidar bem e gerenciar os próprios desconfortos.

Primeiramente, o que quero dizer com desconforto? A ideia aqui é utilizar a palavra desconforto em um sentido mais amplo. Há desconfortos que eu chamaria de físicos, como dor, calor, frio, fome, sono. E desconfortos que eu chamaria de psicológicos/emocionais, como tristeza, raiva, saudade, solidão, ansiedade.

Viver, por si só, equivale a sentir desconfortos. Falando sobre isso com minha psicóloga, ela levantou a idéia de que os desconfortos estão relacionados às nossas necessidades.

Lidar bem com os nossos desconfortos estaria relacionado a como lidamos com as nossas necessidades. O grande problema é que, muitas vezes, temos necessidades conflitantes. Assim como temos necessidade de descansar quando estamos com sono, temos necessidade de preparar comida e nos alimentar quando estamos com fome. Mas e sentimos os dois?

Já em um nível de abstração maior, minha namorada, a Carol, disse que a ferramenta que usamos para lidar com os desconfortos é a narrativa. As narrativas que criamos diante das nossas necessidades e desconfortos permitem que lidemos com elas de maneira positiva ou negativa. E eu concordo.

Por exemplo, se alguém nos promete alguma coisa e não cumpre, podemos adotar a narrativa de que a pessoa falhou e, portanto, a raiva que sentimos em relação a ela é legítima. Ou podemos adotar a narrativa de que ela teve algum problema e não conseguiu ou que já deveríamos esperar isso das pessoas porque elas são falhas. O sentimento de frustração talvez seja o mesmo, mas a forma como lidamos com ele através da narrativa muda.

Isso implica que as narrativas que criamos teriam muito mais importância sobre nossas vidas do que a maioria das pessoas entende ou consegue perceber. Por isso, é interessante que prestemos mais atenção nas narrativas que criamos. Isso permitiria que tomássemos mais controle sobre elas, sobre a forma como nos sentimos, sobre nossas vidas e, por consequência, que vivêssemos melhor.

Memento mori... Só que não

Há algumas semanas atrás, me peguei tendo uma saudade grande da minha mãe que gerou uma reflexão. A morte da minha mãe, pra mim, não fez muito sentido por alguns motivos. Primeiro, porque era uma morte que, ainda hoje, eu acho que poderia ter sido evitada. Segundo, porque eu acho que ela não queria ter morrido. E, terceiro, porque a vida dela fazia sentido pra mim.

A morte dela não fez sentido, mas a vida dela fazia. Isso me gerou alguns questionamentos.

Na filosofia, há uma frase famosa, enunciada como "memento mori", da qual uma tradução possível seria "lembre-se de que você vai morrer". E por que isso é importante?

Para quem é adepto dessa filosofia, lembrar-se da inevitabilidade da morte nos faria dar menos importância a coisas superficiais e passageiras, como o orgulho e a vaidade. Lembrar-se da morte nos faria dar mais valor às coisas verdadeiramente importantes.

Por exemplo:

"Briguei com as pessoas que eu gosto por conta de coisas não muito importantes. Não vou ser orgulhoso, vou pedir desculpas, pois pode ser que eu morra amanhã ou depois e não quero perder tempo de vida brigado por coisas pequenas."

Ou...

"Posso morrer amanhã ou depois, logo, vou fazer o meu melhor para deixar algo pra minha família que lhes possa ajudar ou dar um sustento."

Contudo, discordo desse pensamento. Não acho que a morte é que deve dar sentido à vida. Já há algum tempo, eu acho que a vida deve valer por ela mesma. A morte é, justamente, o que tira o valor da vida.

A morte é o fim último da vida, é o que acaba com a existência em um determinado sentido. Assim como eu acho que o valor da vida está na vida, acredito que o valor das coisas está no caminho e não nos fins. Os fins só servem como objetivos ou passagens intermediárias em um contexto maior de contiuidade.

Você normalmente só se preocupa em ir trabalhar e receber um salário pois acredita que vai continuar vivo mês que vem e que terá que pagar as contas e alimentação. A consciência dessa continuidade é que dá sentido à sua atitude de trabalhar por dinheiro.

Quase todas as metas que se colocam na vida são em favor do caminho em si ou da continuidade. Você normalmente só planeja em se formar na faculdade porque acredita que isso vai ser importante para sua vida depois ou pelo conhecimento adquirido em si. Não pelo próprio objetivo de se formar. E, mesmo que fosse pelo simples objetivo de se formar, a sua vida não acabaria ali. Sua vida não perderia sentido porque outros objetivos viriam e continuariam dando sentido à vida. A continuidade dá o sentido. Se, depois que se formasse, sua vida não tivesse mais sentido, não foi o objetivo de se formar que deu sentido à sua vida. Foi o objetivo de se formar que o tirou. Pois o fim tira o sentido da coisa e sua existência.

Se você tivesse a certeza que iria morrer daqui a um mês, não teria sentido entrar em uma faculdade agora, exceto se for algo que você goste de estudar, se for uma experiência que você queira ter ou tiver algo que queira aprender nesse último mês. Reitero, é o valor das coisas e da vida estão nelas mesmas.

Assim como só vale à pena construir patrimônio e deixar herança pela atividade em si ou para deixar como um legado importante. Só vale à pena escrever um livro pelo prazer ou aprendizado de escrever em si ou pra deixar para a posteridade, para a continuidade.

Diante do fim, diante da presença da morte, para as pessoas que não tem visão de continuidade, as coisas deixam de fazer sentido. Na proximidade da morte, aquilo que não faria sentido na vida "normal" pode passar a ser cogitado. Entram aqueles questionamentos do tipo "se você fosse morrer em um mês, o que faria? Assaltaria um banco? Andaria pelado na rua? Abandonaria o emprego e iria mergulhar com tubarões?". Na presença da morte, tudo é justificável e nada faz sentido.

Claro a sabedoria e o conhecimento que as coisas se acabam é importante. Mas não é isso que dá valor às coisas. Quando alguma coisa se vai, é a memória e o que fica dela que é importante.

Com base nessas reflexões, como devemos encarar a vida?

A vida deve ser encarada como se não fosse ter fim, com a consciência de que suas ações tem consequências. Se você morre, fica o que você deixou. As coisas continuam. Inclusive se você briga com quem você tem apreço. Isso tem consequências e continuidade, e isso importa. E, por isso, valeria à pena abrir mão da vaidade e do orgulho e não porque você vai morrer em algum momento. Porque, se pensamos que tudo, inclusive o universo, vai ter fim um dia, então qual seria o sentido das coisas? Logo, por mais que, racionalmente, saibamos que o fim existe, que vivamos como se não soubessemos, mas, repito, com a consciência de que as coisas tem consequências e de que as consequências importam.

PS:  Escrevi este texto como forma de provocação. Se as coisas fossem realmente infinitas e não acabassem, elas também não fariam sentido. A solução? Abraçar o niilismo.

Sobre empresas e barcos

Eu gosto da metáfora de que empresas são como barcos numa competição. O objetivo da competição não é exatamente chegar a um lugar específico, mas ser o barco que está à frente na corrida, o barco mais rápido.

E no que isso implica?

Quando você é contratado pela empresa, você entra no barco e passa remar junto com os outros pra tentar fazer o barco navegar mais rápido. No barco, você ganha sua alimentação e seu sustento, mas tem que dedicar boa parte do seu dia e da sua vida remando.

Se o barco começa a ficar pra trás na competição e perde velocidade, a probabilidade de que ele afunde é maior.

Ninguém no barco quer que ele afunde, porque isso significaria ficar sem sustento. Em especial, os chefes e capitães do barco, porque se tiverem que ingressar em outro barco, é possível que tenham que voltar a remar e não apenas dar as ordens para os outros remarem. Além disso, os chefes e capitães são os que ganham a maior parte das bonificações dos integrantes do barco.

Para o que remam, em geral, é melhor ser integrante do barco e ter que remar (pois isso significa que haverá comida e sustento) do que não participar da corrida e ficar sem nada. Por isso, em muitos casos, eles estariam dispostos a aceitar condições em que teriam que remar muitas horas e ganhando pouca comida, face à alternativa de não ter nada. Além disso, quando o barco vai bem, muitos dos que remam sentem orgulho do barco, pois vêem o desempenho do mesmo como reflexo das suas remadas.

Por isso, as pessoas vão querer defender o próprio barco com afinco e seriam capazes de abrir mão de muita coisa pelo barco (mesmo que as condições de quem rema no barco não sejam as melhores). Se o barco afunda, não é o barco que perde. É todo mundo que tá nele. As pessoas se tornam dependentes do barco.

E quais as regras da competição?

Bom, isso varia de lugar pra lugar. Geralmente, as regras para os barcos consideram que deve haver um limite máximo de tempo por dia que os integrantes do barco podem ficar remando e deve haver um limite mínimo de comida e sustento que o integrante de barco deve ganhar.

Se não há essas regras?

Aí depende... Se tiver muito barco e as pessoas puderem escolher com facilidade em quais barcos elas querem entrar, não é tão problemático para as pessoas. No entanto, geralmente, as vagas nos barcos são limitadas e bem disputadas. E se você já não estiver em um barco e não tiver qualificação de chefe ou capitão, as chances de você ficar de fora da corrida são grandes.

Se a dificuldade de conseguir vaga em um barco é grande, você está mais sujeito a aceitar condições piores de remada e vai ter mais medo que o barco afunde.

Se as regras não existem, é bem possível que, na condição em que há poucos barcos, as horas de remadas sejam altas e a alimentação seja parca. Afinal de contas, é uma competição. O barco cujos integrantes remam mais tempo e que dá menos sustento per capita a eles (logo, é capaz ter ter mais gente remando por quantidade de comida) consegue ir mais rápido. Os que ficam pra trás correm risco de afundar. Logo, nesse contexto, haveria um incentivo para manter os integrantes remando mais tempo com menos comida.

E se os integrantes estiverem insatisfeitos com as condições no barco?

Eles podem tentar achar outro barco, se puderem, em busca de condições melhores. Os problemas são que nem sempre é fácil conseguir vagas em barcos e que os diferentes barcos acabam oferecendo condições similares a seus remadores (pois eles estão em uma competição).

Uma nota pra quem é a favor da liberdade: "liberdade de escolha" entre passar fome e ser semi-escravo não é liberdade, visto que muita gente acaba se vendo sem alternativas de buscar condições melhores.

Por isso, é importante sim que a associação de barcos ou o organizador da competição institua as regras. Caso contrário, quase tudo é válido.

Vontando ao mundo real...

Pode-se questionar que a tecnologia tem dado mais produtividade às empresas e que a maior parte do trabalho tem sido automatizada, portanto, não haveria tanto incentivo para a exploração do trabalho das pessoas. No entanto, na metáfora dos bacros, os recursos gastos com a alimentação das pessoas poderia servir também para representar os recursos gastos com a tecnologia. Mais dinheiro que se usa para pagar funcionários das empresas significa menos dinheiro pra investir em tecnologia e produtividade, logo, o incentivo de manter baixo o sustento dado aos remadores permanece.

Sobre a competição...

Por que ela existe? E se não existisse? Deveria haver regras diferentes? Tudo isso há de se questionar, mas não sou eu que vai responder. Estou apenas descrevendo uma competição de barcos.