sábado, 15 de agosto de 2020

Sobre empresas e barcos

Eu gosto da metáfora de que empresas são como barcos numa competição. O objetivo da competição não é exatamente chegar a um lugar específico, mas ser o barco que está à frente na corrida, o barco mais rápido.

E no que isso implica?

Quando você é contratado pela empresa, você entra no barco e passa remar junto com os outros pra tentar fazer o barco navegar mais rápido. No barco, você ganha sua alimentação e seu sustento, mas tem que dedicar boa parte do seu dia e da sua vida remando.

Se o barco começa a ficar pra trás na competição e perde velocidade, a probabilidade de que ele afunde é maior.

Ninguém no barco quer que ele afunde, porque isso significaria ficar sem sustento. Em especial, os chefes e capitães do barco, porque se tiverem que ingressar em outro barco, é possível que tenham que voltar a remar e não apenas dar as ordens para os outros remarem. Além disso, os chefes e capitães são os que ganham a maior parte das bonificações dos integrantes do barco.

Para o que remam, em geral, é melhor ser integrante do barco e ter que remar (pois isso significa que haverá comida e sustento) do que não participar da corrida e ficar sem nada. Por isso, em muitos casos, eles estariam dispostos a aceitar condições em que teriam que remar muitas horas e ganhando pouca comida, face à alternativa de não ter nada. Além disso, quando o barco vai bem, muitos dos que remam sentem orgulho do barco, pois vêem o desempenho do mesmo como reflexo das suas remadas.

Por isso, as pessoas vão querer defender o próprio barco com afinco e seriam capazes de abrir mão de muita coisa pelo barco (mesmo que as condições de quem rema no barco não sejam as melhores). Se o barco afunda, não é o barco que perde. É todo mundo que tá nele. As pessoas se tornam dependentes do barco.

E quais as regras da competição?

Bom, isso varia de lugar pra lugar. Geralmente, as regras para os barcos consideram que deve haver um limite máximo de tempo por dia que os integrantes do barco podem ficar remando e deve haver um limite mínimo de comida e sustento que o integrante de barco deve ganhar.

Se não há essas regras?

Aí depende... Se tiver muito barco e as pessoas puderem escolher com facilidade em quais barcos elas querem entrar, não é tão problemático para as pessoas. No entanto, geralmente, as vagas nos barcos são limitadas e bem disputadas. E se você já não estiver em um barco e não tiver qualificação de chefe ou capitão, as chances de você ficar de fora da corrida são grandes.

Se a dificuldade de conseguir vaga em um barco é grande, você está mais sujeito a aceitar condições piores de remada e vai ter mais medo que o barco afunde.

Se as regras não existem, é bem possível que, na condição em que há poucos barcos, as horas de remadas sejam altas e a alimentação seja parca. Afinal de contas, é uma competição. O barco cujos integrantes remam mais tempo e que dá menos sustento per capita a eles (logo, é capaz ter ter mais gente remando por quantidade de comida) consegue ir mais rápido. Os que ficam pra trás correm risco de afundar. Logo, nesse contexto, haveria um incentivo para manter os integrantes remando mais tempo com menos comida.

E se os integrantes estiverem insatisfeitos com as condições no barco?

Eles podem tentar achar outro barco, se puderem, em busca de condições melhores. Os problemas são que nem sempre é fácil conseguir vagas em barcos e que os diferentes barcos acabam oferecendo condições similares a seus remadores (pois eles estão em uma competição).

Uma nota pra quem é a favor da liberdade: "liberdade de escolha" entre passar fome e ser semi-escravo não é liberdade, visto que muita gente acaba se vendo sem alternativas de buscar condições melhores.

Por isso, é importante sim que a associação de barcos ou o organizador da competição institua as regras. Caso contrário, quase tudo é válido.

Vontando ao mundo real...

Pode-se questionar que a tecnologia tem dado mais produtividade às empresas e que a maior parte do trabalho tem sido automatizada, portanto, não haveria tanto incentivo para a exploração do trabalho das pessoas. No entanto, na metáfora dos bacros, os recursos gastos com a alimentação das pessoas poderia servir também para representar os recursos gastos com a tecnologia. Mais dinheiro que se usa para pagar funcionários das empresas significa menos dinheiro pra investir em tecnologia e produtividade, logo, o incentivo de manter baixo o sustento dado aos remadores permanece.

Sobre a competição...

Por que ela existe? E se não existisse? Deveria haver regras diferentes? Tudo isso há de se questionar, mas não sou eu que vai responder. Estou apenas descrevendo uma competição de barcos.

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